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A Ilegitimidade Passiva do Profissional Liberal Diante da Teoria da Dupla Garantia Constitucional

Fabiana Attié

Conselheira jurídica e científica da Anadem, especialista em Direito Médico e Hospitalar pela EPD e sócia do escritório Attié & Lucidos Advogados Associados.

 

A Ilegitimidade Passiva do Profissional Liberal Diante da Teoria da Dupla Garantia Constitucional

 

Antes de tecer maiores considerações  sobre a Teoria da Dupla Garantia Constitucional é preciso destacar o que a Constituição da República Federativa do Brasil de 198834 estabelece sobre a responsabilidade civil extracontratual do Estado.

O art. 37, § 6º, da Constituição34, prevê a responsabilidade objetiva do Estado, pois as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que os agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, sendo assegurado o direito de regresso contra o responsável, em casos de dolo ou culpa.

RESPONSABILIDADE DO ESTADO

Os três elementos para a configuração da responsabilidade do Estado são a conduta oficial, o dano e o nexo causal, sendo certo que tal responsabilidade independe de comprovação de conduta culposa, pois se trata de responsabilidade objetiva assumida pelo Estado.

Com relação à mencionada responsabilidade objetiva, à doutrina e à jurisprudência, entende-se sem maiores questionamentos que o fundamento se encontra nascedouro na Teoria do Risco Administrativo, com destaque para a análise da Teoria da Dupla Garantia do Direito de Regresso conferido ao Estado contra o agente, em casos de dolo ou culpa.

Nesse sentido, o mestre Hely Lopes Meirelles entende pela impossibilidade da presença do agente público no polo passivo da demanda, já que o art. 37, §6º, da Constituição34  prevê que somente o Estado pode ocupar essa posição processual, ou seja, o agente estatal causador do dano só pode ser responsabilizado na ação de regresso proposta pelo ente público, nos casos em que agir com dolo ou culpa.

 

INTERPRETAÇÃO DO STF

Com base nesse dispositivo constitucional, o Supremo Tribunal Federal (STF),ao interpretá-lo, firmou posicionamento  no sentido de que o particular que tenha sofrido qualquer dano somente pode demandar o ente público ou a pessoa jurídica de  direito privado a que o agente estiver vinculado, a fim de obter a devida indenização pelo dano causado, ou seja, de acordo com o referido entendimento, o agente público é pessoa ilegítima para figurar o polo passivo de eventual demanda.

O tratamento conferido à questão pelo STF encontra amparo no princípio da impessoalidade, mais especificamente em um dos desdobramentos, qual seja  a teoria do órgão. Assim, quando algum agente público atua frente ao administrado, não o faz como particular representando o Estado, mas como o próprio Estado, razão pela qual a conduta não pode ser imputada diretamente a ele, mas somente à pessoa jurídica que engloba o órgão pertencente.

Essa é a razão pela qual o referido  entendimento recebeu a denominação de Teoria da Dupla Garantia, sendo certo que a primeira visa proteger o particular, que terá a responsabilidade objetiva assegurada,  dispensando-se a comprovação do dolo ou culpa do agente causador do dano. A segunda tem por objetivo resguardar o agente público, tendo em vista que ele somente responderá perante o ente estatal no caso de uma eventual ação de regresso, conforme  decidiu o STF, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 327904, de relatoria do ministro Carlos Ayres Britto.

Sendo certo que o julga- mento supramencionado tornou-se referência no  trato da matéria pelo STF e foi mencionado como razões de decidir em inúmeros casos julgados sequentemente: AI 552366  AgR, de relatoria da ministra Ellen Gracie, Segunda Turma, julgado em 6/10/2009, publicado no DJe-204 em 29/10/2009; RE 549126, de relatoria do ministro Ayres Britto, julgado em 9/8/2011, publicado no DJe-173, em 9/9/2011; RE 551156 AgR, de relatoria da ministra Ellen Gracie, Segunda Turma, julgado em 10/3/2009,  publicado no DJe-064, em 3/4/2009; AI 406.615, de relatoria do ministro Joaquim Barbosa, decisão monocrática de 20/11/2009, publicada no DJe-233 e divulgada em 11/12/2009; RE 470996 AgR, de relatoria do ministro Eros Grau, Segunda Turma, julgado em 18/8/2009, DJe-171 publicado em 11/9/2009; RE 235025, derelatoria do ministro Gilmar Mendes, julgado em 26/10/2010, publicado no DJe-222,     em 19/11/2010; RE 601104, de relatoria da ministra Carmen Lúcia, julgado em 26/8/2009, publicado no DJe-173, em 15/9/2009; e RE 344133, de relatoria do ministro Marco Aurélio, Primeira Turma, julgado em 9/9/2008, publicado no DJe-216, em 14/11/2008.

 

DUPLA GARANTIA

 

Dessa forma, do acima citado, depreende-se que essa Dupla Garantia significa que o referido dispositivo, ao mesmo tempo em que favorece o particular – no sentido de que é mais solvente o Es- tado que o agente –, beneficia também aquele que supostamente causou o dano, e que somente poderá ser demandado pelo fato diretamente pela pessoa jurídica, de direito público ou privado, a qual está vinculado.

Com base nesse posicionamento, a eventual demanda   interposta contra o agente público deve ser extinta sem julgamento do mérito pela total ausência de legitimidade para figurar no polo passivo, nos termos do art. 485, VI, do Código de Processo Civil (CPC)23, juntamente ao art. 37, § 6º, da Constituição34.



DIVERGÊNCIA DOUTRINÁRIA

 

Todavia, apesar da jurisprudência do STF ser uníssona, há divergência doutrinária sobre a teoria, a qual se funda basicamente na faculdade que deve ser conferida ao particular de demandar o Estado, o agente público ou ambos.

O não menos prestigiado doutrinador Celso Antônio Bandeira de Melo comunga do entendimento no sentido de que cabe à vítima decidir se demanda contra o Estado, o agente, ou ambos, não havendo no dispositivo constitucional qualquer impedimento para que isso aconteça, principalmente se levarmos em consideração que, iniciado o procedimento de execução contra ente estatal, observando-se as regras constantes no CPC23, institutos como a penhora e a expropriação,  utilizados na execução contra particulares, não podem ser utili- zados em face da Fazenda Pública, já que os bens públicos possuem a prerrogativa de serem impenhoráveis. Sendo certo, ainda, que o art. 100 da Constituição34 regula o processo especial de execução da administra- ção, instituindo o regime dos precatórios, que devem ser observados pela União, Estados-Membros, Municípios, Distrito Federal, Autarquias e Fundações Públicas, ou seja, todos aqueles englobados no conceito de Fazenda Pública.

Contrariando o entendimento pacífico do STF, em um julgado do ano de 2013, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) acolheu a tese divergente da doutrina ao julgar o Recurso Especial  nº 1.325.862/PR, de relatoria do ministro Luis Felipe Salomão.

Em julgamentos anteriores também foi esse o posicionamento do STJ, como se pode inferir nos seguintes Recursos Especiais: REsp 731.746/SE, de relatoria do ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 5/8/2008, sendo a data do  julgamento, 4/5/2009; e REsp 759.272/GO, de relatoria do ministro Humberto Gomes de Barros, Terceira Turma, julgado em 18/8/2005, sendo a data do julgamento, 19/6/2006.

Diante da relevante controvérsia entre a doutrina, bem como entre os principais tribunais do País, a tese da Dupla Garantia deve ser sempre suscitada em defesa do agente público em questões que envolvam a atuação profissional, no caso específico dos profissionais da saúde, principalmente se levarmos em consideração que o STF é órgão máximo do Poder Judiciário brasileiro.

 

 


 

 


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