Direito Na Mesa é uma série de convidados operadores do Direito especialista nos diversos segmentos da lei.
Helder Lucidos é advogado de São Paulo e Vice-Presidente do Capítulo Paulista da ASOLAMEDE - Associação Latino-americana de Direito Médico, que advoga como especialista há 10 anos.
O bate-papo é sobre os aspectos legais e tendências do direito médico sobre a responsabilidade civil dos profissionais de saúde, as precauções e o panorama entre os órgãos governamentais (Ministério da Saúde, ANS e Secretarias do Governo) e entidades (ABM, CFM e CRM).
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Helder Lucidos

Conselheiro jurídico e científico da Anadem, sócio do escritório Attié & Lucidos Advogados Associados, especialista em Direito Médico e Hospitalar pela EPD, habilitado em Direito à Saúde Baseada em Evidências pelo IEP e especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela PUC/Campinas.

 

Cultura Justa: como diferenciar condutas culposas de contextos que exigem melhorias

 

Em julho de 1972, uma aeronave caiu logo após a descolagem do aeroporto de Heathrow (London, United Kingdom). Apesar de felizmente não ter sido fatal para ninguém no solo, os 118 ocupantes não resistiram e a aeronave ficou totalmente destruída. Uma investigação detalhada determinou que o acidente ocorreu depois da aeronave ter apresentado uma pane impossível de recuperação, decorrente de uma resposta inapropriada da tripulação a uma incorreta configuração das asas.
Durante essa mesma investigação, uma das coisas que se tornou aparente foi que incidentes semelhantes ao indicado já ocorridos não tinham sido revelados e, mesmo com aqueles que tinham sido, não foram tomadas medidas apropriadas com esse conhecimento.
A investigação do acidente levou a várias recomendações, sendo a mais relevante delas no sentido de que todas as aeronaves britânicas com peso máximo de operação acima dos 27.000 kg tinham que ser obrigatoriamente equipadas com gravadores de voz no cockpit.
No entanto, a recém-formada Autoridade da Aviação Civil (CAA – Civil Aviation Authority), no Reino Unido, verificou que, como regulador responsável, não tinha o conhecimento automático das ocorrências relacionadas com a segurança, exceto se estas fossem tidas como suficientemente graves para necessitar de uma investigação independente ou se fossem reportadas como um risco de colisão no ar.
Foi então decidido que deveriam existir requisitos para todos os eventos relacionados com a segurança que permitissem o conhecimento da Autoridade acerca dos mesmos, por meio das entidades envolvidas. Surgiu então o esquema do Reporte Obrigatório de Ocorrência (MOR – Mandatory Occurrence Report), em 1976.
Às entidades foram dadas garantias de que o objetivo primário do esquema seria o aumento e desenvolvimento da segurança de voo e que, excetuando os casos de negligência grave, a CAA nunca abriria processos relacionados a violações da lei não premeditadas ou inadvertidas, que fossem reportadas através do MOR.

CULTURA JUSTA

A definição de Cultura Justa do EUROCONTROL91, “a cultura em que os operadores da linha da frente não são punidos por ações, omissões ou decisões tomadas por eles sendo proporcionais à sua experiência e treino, mas onde a negligência grave, violações intencionais e atos destrutivos não são tolerados”, é amplamente aceita no espectro da aviação e cada vez mais aplicada no âmbito da saúde, quando associada às questões de qualidade e segurança do paciente.
Segundo o Instituto Brasileiro para Excelência em Saúde, organizações de alta confiabilidade são aquelas que realizam trabalhos bastante complexos e perigosos, mas
minimizam consistentemente os eventos adversos, mantendo um compromisso com a segurança em todos os níveis, estabelecendo, dessa forma, uma “cultura de segurança”113.
cultura de segurança percebida como deficiente tem sido associada às taxas de erro aumentadas, destacando-se que para se obter uma maior eficiência é preciso que as
organizações ligadas à saúde desenvolvam uma cultura de segurança que engloba as seguintes características primordiais:


• reconhecimento da natureza de alto risco das atividades realizadas pela organização, com a determinação de se alcançar operações consistentemente seguras;

• um ambiente sem culpa onde os indivíduos são capazes de relatar erros ou quase acidentes sem medo de repreensão ou punição;

• encorajamento da colaboração para procurar soluções para problemas de segurança dos pacientes;

• comprometimento organizacional de recursos para tratar de questões de segurança.

 

Melhorar a cultura da segurança na saúde é essencial para prevenir ou reduzir os erros e melhorar a qualidade geral dos cuidados, tendo em vista que uma cultura subdesenvolvida de segurança em saúde aponta para falhas relacionadas à falta de trabalho em equipe, comunicação frágil, assim como à cultura de baixas expectativas e hierarquia/autoridade.
O que se observa é que a cultura da culpa do indivíduo e não do sistema, nos cuidados de saúde, prejudica o avanço de uma cultura de segurança, pois uma cultura não punitiva ajuda a ampliar a notificação de eventos adversos e, consequentemente, é um dos principais aliados para a melhoria contínua dos processos.
Para Robert Wachter e Peter Provonost135, em artigo no News England Journal of Medicine, a ideia não é ter “um ambiente tão punitivo que um único lapso resulte
em punição, a não ser que tal erro seja ao mesmo tempo proposital e escandaloso”.
A questão não é o que acontece com os profissionais de saúde ocupados e distraídos que esquecem de lavar as mãos ou tenham algum lapso uma vez. A questão é o que
acontece quando o profissional faz isso habitualmente e por vontade própria, mesmo após treinamentos, conselhos e melhorias do sistema.
Foi com base nesse conceito de cultura justa que o deputado federal Lucio Antonio Mosquini (PMDB/RO) apresentou o Projeto de Lei n° 2865/1554 que altera a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil)27, para determinar que não sejam considerados atos ilícitos os erros cometidos por profissionais de saúde em intervenção necessária, quando decorrente de emergência a que não deu causa, e o Decreto-Lei nº 2.84840, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para estabelecer que não se considere imperícia, imprudência e negligência os erros cometidos por profissionais de saúde em intervenção necessária, quando decorrente de emergência a que não deu causa.54
Em sua justificação, o parlamentar assevera que o Código Civil27 determina que, aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Ademais, acrescenta que não constitui em atos ilícitos os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido, ou ainda a deterioração ou destruição de coisa alheia, ou a lesão à pessoa, a fim de remover perigo iminente.

Destacando que mediante análise dos dispositivos mencionados, entende-se que o erro profissional em situação de risco, que não for cometido pelas modalidades de culpa (negligência, imperícia e imprudência), não configura ato ilícito e, assim, não gera responsabilidade civil.
Isso ocorre porque são pressupostos da responsabilidade civil subjetiva a conduta culposa do agente, o nexo causal e o dano. Se algum deles não estiver presente, a responsabilidade não restará configurada.
O texto conclui que a Medicina é uma atividade arriscada. Os profissionais de saúde, ao exercitarem seu ofício, estão sujeitos a executar atos dos quais podem advir consequências graves, como a deformidade, a restrição da capacidade física ou mental e até a morte. Em atendimentos emergenciais, os riscos aumentam ainda mais, pois as deliberações têm de ser feitas em caráter imediato, com pouco tempo de reflexão.
Assim, o ordenamento jurídico pátrio, ao conferir culpa penal e civil ao profissional de saúde que cometa erros em atendimentos emergenciais, coloca-o num dilema ético. Por um lado, o Código de Ética Médica72 determina que a medicina terá de ser exercida sem nenhum tipo de discriminação e que o médico não poderá negar atendimento em caso de urgência ou emergência. Por outro lado, juízes e tribunais, decidem pela culpa, no âmbito cível e penal, de médicos que, em situações emergenciais, não se negaram a tentar salvar a vida de pacientes, mas, sem intenção, cometeram erros totalmente escusáveis em face da situação enfrentada. Principalmente se levarmos em consideração a precariedade, de uma forma geral, da estrutura do sistema de saúde no Brasil, a qual precisa ser melhorada consideravelmente.
Todavia, foi com base na cultura da culpa do indivíduo, e não do sistema, que a Comissão de Seguridade Social e Família, sob a relatoria do deputado federal Luiz Henrique Mandetta, que é médico e lançou a Frente Parlamentar da Medicina para colocar a medicina na pauta de debates do Congresso Nacional, rejeitou o referido Projeto sob o argumento de que a eventual aprovação permitiria que os maus profissionais, “que agem sem as devidas cautelas, desidiosamente e em total descompasso com as normas éticas”, escapassem de punições legais53.
O parlamentar ressaltou, ainda, que “o profissional de saúde que, numa situação de anormalidade, causa dano ao paciente, se sujeita a sanções na esfera penal e cível”. O Projeto ainda precisa ser analisado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) e pelo Plenário da Câmara.

Helder Lucidos

Conselheiro jurídico e científico da Anadem, sócio do escritório Attié & Lucidos Advogados Associados, especialista em Direito Médico e Hospitalar pela EPD, habilitado em Direito à Saúde Baseada em Evidências pelo IEP e especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela PUC/Campinas.

 

O Suposto ‘‘Erro Médico’’ e o Segredo de Justiça

 

Nos termos do art. 5º, LX, da Constituição da     República Federativa do Brasil de 198834, a publicidade dos atos praticados no decorrer do processo constitui elemento indissociável do processo justo no Brasil. A lei só poderá restringi-la quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem. De acordo com ordenamen- to jurídico pátrio, a regra é  a publicidade do processo acessível a todos que podem consultá-lo, assistir às audiências e até mesmo pedir certidões. O Direito é chamado “publicidade imediata” nos termos do art. 93, IX, da Constituição34. Todavia, como foi dito anteriormente, o processo pode, excepcionalmente, correr em regime de publicidade especial ou, como mais comumente se aborda, sob segredo de justiça, razão pela qual se restringe o acesso às partes e aos procuradores, em geral, nos casos que dizem respeito aos menores de idade, ao estado das pessoas ou, ainda, às questões de sexualidade ou intimidade das partes envolvidas. Obedecendo aos preceitos constitucionais, bem como os costumes reconhecidos pelos tribunais do País, o art. 189 do novo Código de Processo Civil (CPC)98 passou a prever outras possibilidades não abrangidas pelo código anterior, prescrevendo que:

 

Art. 189. Os atos processuais são públicos, todavia tramitam em segredo de justiça os processos:

 

  1. - Em que o exija o interesse público ou social;

 

  1. - Que versem sobre casamento, separação de corpos, divórcio, separação, união estável, filiação, alimentos e guarda de crianças e adolescentes

 

  1. - Que constem dados protegidos pelo direito constitucional à intimidade;

 

  1. - Que versem sobre arbitra- gem, inclusive sobre cumpri- mento de carta arbitral, desde que a confidencialidade estipulada na arbitragem seja comprovada perante o juízo.98

Há que se destacar, contudo, que o referido rol é apenas exemplificativo, podendo o juiz, de acordo com o caso concreto, determinar o trâmite do processo em segredo de justiça em outros casos não previstos no referido dispositivo129.

 

SEGREDO DE JUSTIÇA

 

Trazendo a situação  para o âmbito das ações em que se discute a relação entre médico e paciente, existem dois ângulos sob os quais a questão do segredo de justiça precisa ser  analisada. O primeiro diz respeito à proteção, à intimidade do paciente e ao sigilo dos dados de saúde, tendo em vista que o sigilo médico profissional é dever inerente ao desempenho da profissão, caracterizando a violação, infração ética, penal e cível, sendo certo que, na área do Direito Civil é cabível juridicamente a responsabilização, caso haja dano material ou moral ao paciente que tiver os dados clínicos tornados públicos130. O segundo aspecto diz respeito aos efeitos negativos causados pela publicidade negativa à atividade do profissional da saúde em geral, em especial ao médico.

Atento a essas questões, o Conselho Federal de Medicina (CFM) editou a Resolução nº 1.605/2000, regulamentando a questão do sigilo médico, que prevê, no art. 7º, a  possibilidade do profissional utilizar o prontuário como meio de defesa judicial75. Em razão disso, torna-se imprescindível a juntada do prontuário do paciente como meio de prova de defesa, haja vista a necessidade de realizar uma perícia técnica na maioria dos casos, motivo pelo qual a tramitação dos processos sob segredo de justiça tem  o condão de impedir a publicidade das informações pessoais e sigilosas lançadas no prontuário médico do paciente.

O sigilo processual evita, ainda, a exposição e julgamento popular antecipado a respeito do médico, que figura no polo passivo da demanda, pois é cada vez mais frequente que os pacientes, antes de escolherem o mé- dico, consultem seus dados junto à justiça em busca de processos, julgando a qualidade e o zelo do profissional em função da existência de eventual processo, independentemente de condenação. Principalmente quando o paciente se excede no exercício regular do seu direito, empenhando-se numa verdadeira “cruzada” difamatória contra o médico nos principais meios de comunicação, mais especificamente nas redes sociais. Hipótese que geralmente encontra respaldo no sensacionalismo da mídia e que acaba alcançando proporções nacionais nos casos em que a imprensa oferece grande repercussão aos fatos e “crucifica” o médico nos noticiários, independentemente de haver comprovação de erro profissional. Pensar de forma contrária implica admitir violação à intimidade da parte, de acordo com a Constituição34 (art. 5º, X);  ao sigilo de dados, (art. 5º, XII); bem como ao resguardo de informações necessárias ao exercício profissional (art.5º, XIV), tendo em vista que tais informações têm sido utilizadas para desabonar a conduta dos profissionais no meio de atuação.

 

SIGILO PROCESSUAL

 

O sigilo processual, nos processos que envolvem supostos “erros médicos”, visa garantir o direito à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem do profissional, nos termos do art. 5°, X, da Constituição34. Isso porque a intimidade e a vida privada são aspectos pessoais, familiares e profissionais de cada indivíduo, tutelados pela inviolabilidade constitucionalmente garantida, que não devem ser transmitidos em determinadas hipóteses ao público em geral sem a certeza da veracidade da prática do ato tido como ilegal no ordenamento jurídico. Esse caso só será alcançado de- pois da prolação de sentença transitada em julgado.

Não se deve esquecer também o art. 5°, LVII, da Constituição34, que vem em benefício de qualquer sujeito com o intuito de preservar a presunção de inocência, enquanto não houver o trânsito em julgado de sentença, ou seja, não é demais afirmar, ainda, que a tramitação do processo sob segredo de justiça deverá ser observada como forma de garantia da intimidade do médico, resguardando-se, assim, o estado de inocência. Essa hipótese tem sido encampada pelos tribunais de justiça do País, conforme já decidiu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) ao julgar o agravo de instrumento nº 70057793721, de relatoria da desembargadora Isabel Dias Almeida, assim como o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) ao julgar o Agravo de Instrumento nº 20150020317013, de relatoria da desembargadora Maria Ivatônia.

O sigilo é, antes de tudo, uma garantia individual conquistada e positivada pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que tem como objetivo principal afastar as consequências nocivas do julgamento popular antecipado, prévio e precário a respeito dos médicos que figuram no polo passivo de demandas judiciais, que lhe atribuem conduta culposa no trato com o paciente.

 


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