Cultura Justa: como diferenciar condutas culposas de contextos que exigem melhorias

Helder Lucidos

Conselheiro jurídico e científico da Anadem, sócio do escritório Attié & Lucidos Advogados Associados, especialista em Direito Médico e Hospitalar pela EPD, habilitado em Direito à Saúde Baseada em Evidências pelo IEP e especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela PUC/Campinas.

 

Cultura Justa: como diferenciar condutas culposas de contextos que exigem melhorias

 

Em julho de 1972, uma aeronave caiu logo após a descolagem do aeroporto de Heathrow (London, United Kingdom). Apesar de felizmente não ter sido fatal para ninguém no solo, os 118 ocupantes não resistiram e a aeronave ficou totalmente destruída. Uma investigação detalhada determinou que o acidente ocorreu depois da aeronave ter apresentado uma pane impossível de recuperação, decorrente de uma resposta inapropriada da tripulação a uma incorreta configuração das asas.
Durante essa mesma investigação, uma das coisas que se tornou aparente foi que incidentes semelhantes ao indicado já ocorridos não tinham sido revelados e, mesmo com aqueles que tinham sido, não foram tomadas medidas apropriadas com esse conhecimento.
A investigação do acidente levou a várias recomendações, sendo a mais relevante delas no sentido de que todas as aeronaves britânicas com peso máximo de operação acima dos 27.000 kg tinham que ser obrigatoriamente equipadas com gravadores de voz no cockpit.
No entanto, a recém-formada Autoridade da Aviação Civil (CAA – Civil Aviation Authority), no Reino Unido, verificou que, como regulador responsável, não tinha o conhecimento automático das ocorrências relacionadas com a segurança, exceto se estas fossem tidas como suficientemente graves para necessitar de uma investigação independente ou se fossem reportadas como um risco de colisão no ar.
Foi então decidido que deveriam existir requisitos para todos os eventos relacionados com a segurança que permitissem o conhecimento da Autoridade acerca dos mesmos, por meio das entidades envolvidas. Surgiu então o esquema do Reporte Obrigatório de Ocorrência (MOR – Mandatory Occurrence Report), em 1976.
Às entidades foram dadas garantias de que o objetivo primário do esquema seria o aumento e desenvolvimento da segurança de voo e que, excetuando os casos de negligência grave, a CAA nunca abriria processos relacionados a violações da lei não premeditadas ou inadvertidas, que fossem reportadas através do MOR.

CULTURA JUSTA

A definição de Cultura Justa do EUROCONTROL91, “a cultura em que os operadores da linha da frente não são punidos por ações, omissões ou decisões tomadas por eles sendo proporcionais à sua experiência e treino, mas onde a negligência grave, violações intencionais e atos destrutivos não são tolerados”, é amplamente aceita no espectro da aviação e cada vez mais aplicada no âmbito da saúde, quando associada às questões de qualidade e segurança do paciente.
Segundo o Instituto Brasileiro para Excelência em Saúde, organizações de alta confiabilidade são aquelas que realizam trabalhos bastante complexos e perigosos, mas
minimizam consistentemente os eventos adversos, mantendo um compromisso com a segurança em todos os níveis, estabelecendo, dessa forma, uma “cultura de segurança”113.
cultura de segurança percebida como deficiente tem sido associada às taxas de erro aumentadas, destacando-se que para se obter uma maior eficiência é preciso que as
organizações ligadas à saúde desenvolvam uma cultura de segurança que engloba as seguintes características primordiais:


• reconhecimento da natureza de alto risco das atividades realizadas pela organização, com a determinação de se alcançar operações consistentemente seguras;

• um ambiente sem culpa onde os indivíduos são capazes de relatar erros ou quase acidentes sem medo de repreensão ou punição;

• encorajamento da colaboração para procurar soluções para problemas de segurança dos pacientes;

• comprometimento organizacional de recursos para tratar de questões de segurança.

 

Melhorar a cultura da segurança na saúde é essencial para prevenir ou reduzir os erros e melhorar a qualidade geral dos cuidados, tendo em vista que uma cultura subdesenvolvida de segurança em saúde aponta para falhas relacionadas à falta de trabalho em equipe, comunicação frágil, assim como à cultura de baixas expectativas e hierarquia/autoridade.
O que se observa é que a cultura da culpa do indivíduo e não do sistema, nos cuidados de saúde, prejudica o avanço de uma cultura de segurança, pois uma cultura não punitiva ajuda a ampliar a notificação de eventos adversos e, consequentemente, é um dos principais aliados para a melhoria contínua dos processos.
Para Robert Wachter e Peter Provonost135, em artigo no News England Journal of Medicine, a ideia não é ter “um ambiente tão punitivo que um único lapso resulte
em punição, a não ser que tal erro seja ao mesmo tempo proposital e escandaloso”.
A questão não é o que acontece com os profissionais de saúde ocupados e distraídos que esquecem de lavar as mãos ou tenham algum lapso uma vez. A questão é o que
acontece quando o profissional faz isso habitualmente e por vontade própria, mesmo após treinamentos, conselhos e melhorias do sistema.
Foi com base nesse conceito de cultura justa que o deputado federal Lucio Antonio Mosquini (PMDB/RO) apresentou o Projeto de Lei n° 2865/1554 que altera a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil)27, para determinar que não sejam considerados atos ilícitos os erros cometidos por profissionais de saúde em intervenção necessária, quando decorrente de emergência a que não deu causa, e o Decreto-Lei nº 2.84840, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), para estabelecer que não se considere imperícia, imprudência e negligência os erros cometidos por profissionais de saúde em intervenção necessária, quando decorrente de emergência a que não deu causa.54
Em sua justificação, o parlamentar assevera que o Código Civil27 determina que, aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Ademais, acrescenta que não constitui em atos ilícitos os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido, ou ainda a deterioração ou destruição de coisa alheia, ou a lesão à pessoa, a fim de remover perigo iminente.

Destacando que mediante análise dos dispositivos mencionados, entende-se que o erro profissional em situação de risco, que não for cometido pelas modalidades de culpa (negligência, imperícia e imprudência), não configura ato ilícito e, assim, não gera responsabilidade civil.
Isso ocorre porque são pressupostos da responsabilidade civil subjetiva a conduta culposa do agente, o nexo causal e o dano. Se algum deles não estiver presente, a responsabilidade não restará configurada.
O texto conclui que a Medicina é uma atividade arriscada. Os profissionais de saúde, ao exercitarem seu ofício, estão sujeitos a executar atos dos quais podem advir consequências graves, como a deformidade, a restrição da capacidade física ou mental e até a morte. Em atendimentos emergenciais, os riscos aumentam ainda mais, pois as deliberações têm de ser feitas em caráter imediato, com pouco tempo de reflexão.
Assim, o ordenamento jurídico pátrio, ao conferir culpa penal e civil ao profissional de saúde que cometa erros em atendimentos emergenciais, coloca-o num dilema ético. Por um lado, o Código de Ética Médica72 determina que a medicina terá de ser exercida sem nenhum tipo de discriminação e que o médico não poderá negar atendimento em caso de urgência ou emergência. Por outro lado, juízes e tribunais, decidem pela culpa, no âmbito cível e penal, de médicos que, em situações emergenciais, não se negaram a tentar salvar a vida de pacientes, mas, sem intenção, cometeram erros totalmente escusáveis em face da situação enfrentada. Principalmente se levarmos em consideração a precariedade, de uma forma geral, da estrutura do sistema de saúde no Brasil, a qual precisa ser melhorada consideravelmente.
Todavia, foi com base na cultura da culpa do indivíduo, e não do sistema, que a Comissão de Seguridade Social e Família, sob a relatoria do deputado federal Luiz Henrique Mandetta, que é médico e lançou a Frente Parlamentar da Medicina para colocar a medicina na pauta de debates do Congresso Nacional, rejeitou o referido Projeto sob o argumento de que a eventual aprovação permitiria que os maus profissionais, “que agem sem as devidas cautelas, desidiosamente e em total descompasso com as normas éticas”, escapassem de punições legais53.
O parlamentar ressaltou, ainda, que “o profissional de saúde que, numa situação de anormalidade, causa dano ao paciente, se sujeita a sanções na esfera penal e cível”. O Projeto ainda precisa ser analisado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) e pelo Plenário da Câmara.

 


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